Na mesa. No estômago. No conformismo. Na indiferença. Em todos os muros murros. Para isso uma letra basta. Uma letra faz toda a diferença.
segunda-feira, 30 de maio de 2011
Nem mais um município para as colónias
Não sei quantas coisas boas virão do diktat do FMI. Por certo, menos do que as más. Mas uma boa, de certeza, já veio. Ainda que os seus efeitos venham a ser provavelmente limitados. Refiro-me à recomendação feita pela tríade FMI/UE/BCE (sim, tríade, whythefucknot?), à recomendação de diminuir o número de municípios portugueses.
Viva recomendação, espero. Bem sei que, passadas as eleições e novo governo e novo ramerrame estéril, pouco se fará. Mas pelo menos, a ideia ficará por aí a pairar, lançada por uma fonte de “respeito”. E porventura, num futuro remoto, se possa por fim rebentar duma vez por todas com centenas de municípios que deveriam ser inconcebíveis.
É mesmo para me gabar: há anos que digo em conversas da treta que toda a orgânica administrativa portuguesa é uma aberração. Desde a criminosa inutilidade e redundância das assembleias municipais, num sistema em que a oposição tem assento consagrado no próprio executivo, até ao corrupto número excessivo de autarquias. Por outras palavras, os pais da Constituição, neste aspecto autárquico, empunharam o legado bífido do pior dos parlamentarismos – assembleias totalmente irrelevantes – e do pior da ditadura corporativista – “ah, com certeza que todos vão colaborar harmoniosamente para o bem comum lá em cima no executivo camarário!”...
Enfim, mas a questão agora são os números. Os números! 308 Municípios. Uns do tamanho da légua da Póvoa, outros do tamanho da rua da Betesga. Sim, os números obscenos da divisão municipal portuguesa. E com o mote da obscenidade, falemos então dos responsáveis pela mesma: os políticos portugueses.
À boleia da tríade alienígena, eis que reemerge um antigo chefe de Estado, proclamando publicamente opiniões concordantes com as da recomendação triádica. No início deste mês, no dia 4 de Maio, o antigo Presidente da República manifestou-se numa mensagem gravada e passada na conferência “Reorganização Administrativa do País”, promovida pela TSF, pelo Jornal de Notícias e pela Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas. Na sua mensagem, Jorge Sampaio, Presidente entre 1996 e 2006, defendia a redução do número de freguesias e municípios de Portugal. Sim, isso mesmo, uma postura de oportuníssima concordância com a tríade. Muito bem, bem-vindo ao clube, Sr. Presidente.
Em abono do cidadão Sampaio, recordemos alguns factos históricos atinentes à questão autárquica e ocorridos durante o seu segundo mandato presidencial.
Talvez alguns estejam recordados do profundo ódio e respectiva marcação cerrada que os activistas da elevação de Canas de Senhorim a concelho devotaram e fizeram ao Presidente Sampaio, com manifestações de rua em que a palavra de ordem era malhar forte e feio no então mais alto magistrado da Nação. É verdade. Para quem não se lembre, eu recordo a que se deveu isso.
Em Julho de 2003 governava-nos o executivo de coligação pós-eleitoral PSD/CDS, com mais ou menos pês conforme os gostos, liderado pelo Primeiro-Ministro Durão Barroso (PSD), coadjuvado pelo ministro da Defesa Paulo Portas (CDS). No dia 1 de Julho desse ano, a Assembleia da República aprovava por unanimidade a criação do concelho de Fátima. Nem um voto contra, sublinhe-se. Nem uma abstenção, ressublinhe-se. PSD, CDS, PS, PCP, Verdes e Bloco de Esquerda, todos em uníssono e beatífico hossana a Fátima. No mesmíssimo dia outro grupo de freguesias separatistas do concelho de Nelas, lideradas pela de Canas de Senhorim, era premiado também com a elevação a município: o futuro concelho de Canas de Senhorim. Mas, neste caso, não houve hossanas unânimes para Canas. A elevação a concelho foi aprovada apenas pela maioria absoluta de PSD e CDS. Com hossanas ou hocanas, unanimidade ou bloco de direita, o facto é que Canas de Senhorim acabou por se manter num estatuto de concelho tão putativo como o de Fátima. Graças a Deus... Não! Graças a Sampaio!
Então, como? Passo a explicar. Em mais um dos trapezismos legislativos em que a nossa classe política é pródiga, a Assembleia aprovou a 3 de Julho de 2003, dois dias após estes factos, a nova lei-quadro de criação de municípios. Atente-se: após. Dois dias após. A elevação a concelho de Fátima e de Canas de Senhorim só poderia ser efectivada mediante a entrada em vigor dessa lei-quadro. Genial surrealismo do nosso Parlamento, Dalí não faria melhor! Tal como no caso de Canas, a nova lei-quadro, foi aprovada apenas pelo PSD e pelo CDS. Acontece que a esta lei lhe faltou algo imprescindível para entrar em vigor: a assinatura do Presidente.
É. Jorge Sampaio recusou-se a promulgá-la. A 31 de Julho de 2003, o então Presidente usou o seu veto político à lei-quadro. Porquê? Demos-lhe a palavra. Segundo comunicado da Presidência da República, citado pela Lusa, a criação de novos municípios deve ajustar-se “à configuração demográfica do território” e não ser “motivada por puras razões de circunstância” e a lei-quadro “não corresponde a essas exigências e a esses princípios”. De acordo com o jornal Público, Sampaio era contra a criação de municípios “à la carte”, propondo antes a criação dum livro branco que estudasse o movimento concelhio dos últimos cinquenta anos.
Ok. Pronto. O antigo Presidente Jorge Sampaio tem toda a autoridade política e moral para se juntar agora em 2011 à tríade FMI/EU/BCE na defesa da redução de municípios e freguesias. Certo?... Não, nada mais errado.
Sigamos a sugestão presidencial de 2003. Por deformação clubística, semelhante à dele, preferiria um livro verde em vez de um livro branco. Mas estudemos um pouco o movimento concelhio, tal como Sampaio sugeria, ou pelo menos os sucessos institucionais do dito. Não vou para os últimos cinquenta anos. Fico-me pelos 37 anos desde que se derrubou a ditadura do Estado Novo.
Ora então, salvo erro, quando se deu o 25 de Abril, Portugal tinha o “modesto” número de 304 concelhos. Quer isto dizer que o regime democrático foi responsável pela criação de quatro novos municípios neste período de pouco mais de três décadas. Quais foram?
Primeiro, a 11 de Setembro (sim, nine-eleven!) de 1979, é criado o município da Amadora. Primeiro-Ministro? Maria de Lourdes Pintasilgo. Presidente? António Ramalho Eanes.
Depois disso, é preciso esperar até ao final dos anos 90 para ter mais municípios novos em Portugal. A 19 de Março de 1998, Vizela é elevada a concelho. A 19 de Setembro de 1998, Trofa é elevada a concelho. No mesmo dia, Odivelas é também promovida a concelho. Primeiro-Ministro nestes últimos três casos? António Guterres. Presidente nos três casos? Jorge Sampaio.
Ou seja, o Presidente Sampaio assinou por baixo, emprestou a sua imprescindível assinatura à criação de três de todos os quatro novos municípios criados durante o regime democrático. Uma parcela de 75 por cento. A recordação impressionista que tenho dessas elevações a concelho de 1998 é a de que em boa parte os requisitos para a promoção a município foram algo martelados para encaixar na lei em vigor. Ou, se não, foi a lei em vigor que levou umas marteladas para se encaixar nas Vizelas, Trofas e Odivelas municipais. Sim, mas certamente não foram municípios criados “à la carte”, horror com o qual o Presidente Sampaio não contemporizaria.
Resta referir que a ementa que um Presidente se atribui a si próprio durante um primeiro mandato é habitualmente limitada e frugal. Quanto ao cardápio do qual se fornecem os chefes do Estado no seu segundo mandato, há quem diga que é tão vasto e faustoso quanto o apetite de alguém que já não tem paciência para dietas. A promulgação bem comportada dos três novos municípios por Jorge Sampaio ocorreu no seu primeiro mandato presidencial. O veto à lei-quadro dos municípios, e concomitante chumbo dos novos concelhos criados em São Bento, deu-se durante o seu segundo e último mandato em Belém. Mera coincidência, provavelmente. Por via das dúvidas, em 2001, mudei o meu voto para o Garcia Pereira.
PS – Emérito surfista, o antigo ministro do Mar empoleirou-se também na onda de austeridade autárquica da tríade, propondo “agregar freguesias”. Paulo Portas e o seu partido foram co-cozinheiros do banquete seráfico, senhoril, municipal e prematuro de 2003. Passos Coelho, que ainda não ouvi alinhar no desejável extermínio autárquico, foi vice-presidente do grupo parlamentar do PSD entre 96 e 99, ou seja, à altura do festim concelhio de 1998, além de ter concorrido à câmara da Amadora em 1997, sendo devorado então por um Raposo profissional. Quanto ao actual PM, enfim, todos sabem quão parlamentar era em 98 e 2003. Ah, é verdade, Jorge Sampaio foi presidente da câmara de Lisboa entre 1989 e 1995. Não ficou claro se a “redução” de municípios que defende agora inclui a edilidade lisboeta.
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